O SONHO DE WADJDA
⭐⭐⭐⭐
Diário de filmes 2022: 115
Mídia física: DVD. Streaming: não disponível no Brasil. Aluguel ou compra digitais: Google Play/ YouTube Filmes, Apple TV/ iTunes.

A bicicleta contra a opressão

A menina Wadjda concorre num concurso na escola de decorar e interpretar textos do Corão. Porque ela é uma grande devota religiosa? Não: ela quer muito o dinheiro do prêmio para poder comprar uma bicicleta. Pode não parecer muito, mas O Sonho de Wadjda se passa na Arábia Saudita, então, sim, é muito.

Trata-se do primeiro filme inteiramente rodado no país e o primeiro com um elenco totalmente saudita. Também é o primeiro de lá dirigido por uma mulher, Haifaa Al-Mansour, também autora do roteiro. Na época, o filme nem foi exibido em seu próprio pa[ís, já que as salas de cinema eram proibidas. Isso já dá uma boa ideia da restrição geral no que diz respeito à cultura.

Mas, através da odisseia dessa menina, a diretora discorre sobre muitas das opressões a que as mulheres são submetidas no regime local, e que se refletem no próprio processo do filme. Por exemplo, Haifaa não podia dirigir diretamente quando algum homem estava em cena. Não podia interagir com eles. Em cenas de rua, precisava ficar numa van, olhando por um monitor e dando instruções por um walkie-talkie.

Pelo que o filme conta, as meninas não são terminantemente proibidas de andar de bicicleta, mas a questão de costumes é forte. “Meninas que andam de bicicleta depois não conseguem ter filhos”, diz a mãe, se recusando a comprar uma para a filha. Quando a garota anda em uma emprestada, cai e diz que está sangrando, a mãe se desespera: “Sangrando onde?! Sua virgindade!”.

O filme vai enfileirando essas restrições. Mostra a escola de meninas, onde só se estuda o Corão e qualquer leitura de revistas no pátio é considerada pecado. A mãe, vaidosa, mas que na rua precisa usar uma roupa que deixa só os olhos de fora, que não pode dirigir e é obrigada a ver o marido casar com uma segunda esposa.

Como um filme desses conseguiu ser filmado na Arábia Saudita? Pela habilidade narrativa de Haifaa Al-Mansour. Seu filme tem o cuidado de não empunhar ostensivamente uma bandeira, o que poderia levar a uma proibição do filme pelo governo conservador. O que ela faz é narrar essas situações sem grande drama, apresentando como elementos do cotidiano, de maneira que um fundamentalista não entenderia como erradas.

O drama fica concentrado na simbólica luta da rebelde Wadjda, que não parece estar nem aí para a religião, pelo direito de ter uma bicicleta e apostar corrida com o amigo e provar que pode vencê-lo (e, assim, de passagem, mostrar que uma mulher pode ser tão boa nisso quanto um homem).

Interpretada pela excelente Waad Mohammed, é uma heroína moderna e libertária. Como muita coisa relativa ao filme, esta foi a estreia da pequena atriz, aos 9 anos. E ainda é seu único filme, embora, segundo sua biografia no IMDb, siga uma carreira em trabalhos de modelo e comerciais. O contexto local é sempre hostil, mas seria muito bom vê-la de novo, em novos filmes.

Wadjda. Arábia Saudita/ Holanda/ Alemanha/ Jordânia/ Emirados Árabes/ Estados Unidos.
Direção e roteiro: Haifaa Al-Mansour. Elenco: Waad Mohammed, Reem Abdullah, Abdullrahman Al Gohani, Ahd, Sultan Al Assaf.