CIDADÃO KANE
⭐⭐⭐⭐⭐
Diário de Filmes 2021: 56

Uma narrativa para além das revoluções

Lançado há 80 anos, as revoluções narrativas que “Cidadão Kane” compilou dentro de si já foram absorvidas, reprocessadas, diluídas e subvertidas ao longo do tempo. Para um espectador de hoje, que não se esforçar em buscar o olhar do tempo em que o filme foi feito, pode ser desafiador encontrar esses elementos inovadores.

Fora isso, o que sobra então? Revendo o filme de Orson Welles, é um grande prazer reencontrar uma extrema habilidade narrativa. essas “revoluções” nada mais eram do que uma busca incansável por narrar cada cena de uma maneira criativa, inteligente e surpreendente. E esse modo vigoroso de contar a história sobrevive através desses oito décadas, não só numa revisita cinéfila a “Kane”, mas também em alguns dos melhores cineastas da atualidade.

Steven Spielberg, por exemplo, é um cineasta que sempre pensa: “Como posso deixar essa cena mais interessante?”. E isso de uma maneira que isso esteja adequado à narrativa, que tudo no fim não seja apenas um festival de momentos elaborados mal colados um no outro.

Diversos planos diferentes ligados por um plano-sequência que não se percebe, se o espectador não estiver realmente prestando atenção à câmera. Tem muito em Spielberg e tem em “Cidadão Kane”.

Por exemplo, a emblemática cena em que o pequeno Charles Foster Kane brinca na neve, a câmera recua e revela estar dentro da casa onde seus pais, recém-milionários, estão entregando seu destino a um banco para que a empresa seja tutora do garoto até a idade adulta.

Enquanto o debate sobre o futuro de Charles acontece em primeiro plano, o garoto continua em cena o tempo todo, lá no fundo, lá fora, visto pela janela.

Esse recurso da profundidade de campo já não era comum, numa época em que o padrão era desfocar o fundo para que o público prestasse atenção só nos atores em primeiro plano.

Mas a cena é também um plano-sequência em que a câmera começa no garoto, recua dois cômodos dentro da casa até depois de uma mesa e, em seguida e sem cortes, avança até a janela novamente.

O plano seguinte é visto pelo lado de fora, com a mãe em close chamando Charles pela janela, depois a família saindo em plano geral pela porta, para encontrarem Charles no meio da neve, onde se desenrola o diálogo. De novo, tudo sem cortes.

Essa busca pelo mais interessante já vem desde o primeiro segundo, onde a montagem começa da placa “Proibida a entrada” para “pular o muro” da propriedade nababesca de Kane, mostrar seus detalhes (sempre o castelo no lado superior direito da imagem) e terminar com o moribundo personagem, e o superclose de sua boca murmurando “Rosebud”.

Primeiro a morte, depois a vida contada em um cinejornal. Então, a equipe desse veículo, numa sala de projeção decide que precisam saber se a última palavra do magnata possui um significado oculto. Nessa cena, os personagens são todos mostrados em silhueta, ou na contraluz.

São momentos já muito comentados, assim como vários outros. O teto do jornal Inquirer, num tempo em que os cenários dos filmes quase não mostravam os tetos dos ambientes por dentro. Aí também, um plano-sequência com três ou quatro planos dentro dele.

Ou o momento em que Kane passa o controle do jornal para o banco: dois personagens à mesa, um de frente para o outro em primeiro plano, Kane de pé, entre eles, caminha para o fundo da sala, onde fica minúsculo abaixo de janelas que, agora vemos, são enormes.

O close na cantora de ópera, que se abre para o plano geral do palco e depois sobre muito até chegar a dois trabalhadores que assistem tudo lá de cima, e fazem sua crítica demolidora ao que ocorre lá embaixo (efeito conseguido pelo movimento de câmera mais uma trucagem que emenda dois planos com um cenário-miniatura entre eles).

Há também as passagens de tempo. O banqueiro que deseja “Feliz natal. Charles” e completa “e um feliz ano novo” numa cena que é um salto de mais de dez anos.

O casamento, que é mostrado da lua de mel à indiferença total em segundos, em sucessivos cafés da manhã: da proximidade ao distanciamento físico, e onde a esposa até termina lendo o jornal concorrente.

Ou Kane ambicionando a equipe do jornal concorrente, numa foto exposta numa vitrine, e a foto se torna a cena da equipe agora contratada pelo personagem e sendo novamente fotografada, simbolizando sua vitória.

O personagem passando derrotado por dois espelhos, gerando um reflexo infinito.

Ou Kane em primeiro plano, datilografando, o amigo Jedediah mais atrás e Bernstein lá no fundo, em silhueta, na porta iluminada.

Como esta, a composição das imagens e sempre saborosa: quem está na luz e quem está nas sombras; personagens em close e no extremo fundo do quadro ao mesmo tempo (conseguidos pelo trabalho de câmera e luz de Gregg Toland ou por efeitos combinados como a projeção de fundo); fusões em que a primeira imagem e a segunda se combinam em um jogo de luz e escuridão.

Isso tudo para seguir um roteiro (de Herman J. Mankiewicz e Welles) que também fugia do formato começo-meio-fim: começa com a morte do protagonista, resume sua vida do começo ao fim pelo cinejornal e, depois, mostra o que estaria por trás dos fatos pelos flashbacks dos coadjuvantes entrevistados por um dos repórteres.

Ao invés dos flashbacks contarem a vida de Kane em ordem cronológica, eles são quase temáticos: a riqueza e a falência; o jornal; as mulheres e a política; o isolamento. No fim, o mistério a ser desvenda, que guia a trama, só revela que um homem nunca consegue ser compreendido em sua totalidade.

A isso tudo que o filme contém, soma-se aquilo que aconteceu fora do set. Como Welles era o gênio do rádio aos 25 anos e chegou a Hollywood com poder para fazer o filme que quisesse e como quisesse, despertando a inveja de meio mundo; como Mankiewicz escreveu a primeira versão do roteiro se inspirando no poderoso e temido magnata da imprensa William Randolph Hearst, de quem já havia usufruído da hospitalidade várias vezes (entre outras coisas, o jornalismo sensacionalista e controverso, a aventura política, o castelo construído para a amante, de quem ele tentou alavancar a carreira); de como o roteirista teve que brigar para ter crédito no filme (história contada em “Mank”, da Netflix).

Há muitos, muitos detalhes em “Cidadão Kane” que valem observações e comentários. Cada cena é inspirada, tecnica ou narrativamente. E é isso o que garante sua permanência e sua influência ainda hoje.

Onde ver: DVD, blu-ray, Telecine Play

“Citizen Kane”, 1941.
Direção: Orson Welles. Elenco: Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore, Agnes Moorehead, Everett Sloane.