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Um jogo nada simples
Lincoln (Lincoln, Estados Unidos, 2012) não é um filme fácil e que bom que Spielberg – um diretor ainda sempre associado ao escapismo – tenha resolvido fazê-lo assim. Ao exigir um pouco da plateia, ele também se colocou a situação de ser desafiado e conseguir contar bem sua história com as dificuldades que ela apresentava. Com duas horas e meia de projeção de um filme essencialmente de diálogos – e, principalmente, de discussões políticas (de ética, de legislação e de estratégia) -, o diretor se arriscou a – e certamente considerou – perder uma parte do público que acharia o filme enfadonho. Mas, como obra, Lincoln sai ganhando.
É um filme difícil de assistir não porque a narrativa seja complexa, mas porque mesmo assim exige atenção de um público que cada vez menos está disposto a raciocinar na frente de uma tela, não procura encantar por belas imagens mais associadas a um épico, e mesmo os arroubos dramáticos (de que Spielberg gosta tanto) são pouquíssimos. É um filme essencialmente sóbrio, de idéias (e, nisso, a fotografia em tons escuros de Janusz Kaminski é belíssima e adequada). Também não é uma biografia do presidente americano, propriamente dita, mas uma janela de poucos meses onde ele se dedicou a uma missão pessoal – e seu grande legado – que foi a aprovação da emenda constitucional que proibiria a escravidão nos Estados Unidos.
Com habilidade, o roteiro de Tony Kushner expõe os lados e as inúmeras nuances que circundavam a decisão de Lincoln de apostar seu prestígio de presidente recém-reeleito em uma batalha no congresso onde tinha pouca chance de vitória – em uma luta que já fora derrotada anos antes. Como convencer os congressistas adversários? O que acontece se a Guerra da Secessão terminar antes? E, se essa possibilidade aparecer, a que se deve dar preferência? E, continuando a guerra, o que acontece se o presidente tiver um dilema pessoal para lidar (o filho que deseja se alistar – e, portanto, que pode morrer – e a esposa que nervosamente o pressiona para impedir isso)?
Aos poucos, com calma e sem afobação, o filme vai lidando com todos esses “poréns” até o presidente tomar suas decisões. E, para guiar o público pelas sutilezas de um líder determinado por um lado, e equilibrando pratos por outro, Daniel Day-Lewis é essencial. Ele desaparece sob a maquiagem e sob a interpretação de Abraham Lincoln como poucas vezes se viu no cinema. Ajuda e muito ao filme de Spielberg lidar com outra dificuldade monstruosa: humanizar um homem que, por um lado, é um maiores mitos americanos de todos os tempos, incensado dia após dia por proezas que certamente merecem tudo isso, e por outro se tornou fisicamente tão particular que é quase uma caricatura.
Spielberg deu uma entrevista (como Luiz Carlos Merten conta em seu blog) em que conta que Day-Lewis – quando finalmente aceitou o papel após seguidas recusas – pediu um ano para se preparar para o papel. Com certeza, cada um desses 365 dias estão visíveis em sua interpretação. A quem achou “caricato”, lembro que também se disse isso sobre Cate Blanchett e sua interpretação de Katharine Hepburn em O Aviador (2005) – e, no entanto, Kate era exatamente como Cate atuava. Ela era caricata na vida real. Então, quem disse que Lincoln não era aquele homem com um certo desajeito próprio dos muito altos, com um andar esquisito e a fala simples de um homem do Kentucky que teve pouco estudo, mas leu muito?
Lincoln se esforça bravamente para dessacralizar o personagem, mas não o faz totalmente. Não deseja isso e, francamente, não parece mesmo haver como. No filme, Abe Lincoln aceita dar cargos em troca de votos, se desentende com a mulher (Sally Field) a ponto de dizer que deveria tê-la jogado em um hospício, bate no filho que ama, mas que o enfrenta. Sua paciência e tranquilidade (e sabedoria) parece não ter fim, mas uma hora acaba e ele precisa ressaltar o poder que tem para fazer valer sua vontade – que nem é necessariamente a vontade do povo, como o filme sabiamente mostrou.
A democracia não é um jogo nada simples, parece dizer o tempo todo o filme de Spielberg. Lincoln provavelmente será lembrado no futuro como uma obra que sintetiza o jogo de cintura que a política acaba exigindo e de como muitas vezes – por paradoxal que pareça – é preciso recuar para avançar. O personagem de Tommy Lee Jones é emblemático nisso – e tem uma das grandes cenas do filme, negando sem negar os seus ideais em um show de retórica.
Lincoln (Lincoln, Estados Unidos, 2012). Direção: Steven Spielberg. Elenco: Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, Jackie Earle Haley.