RELATOS DO MUNDO
⭐⭐⭐⭐
Diário de Filmes 2021: 21

Duelo entre humanismo e incivilização

O faroeste como gênero cinematográfico percorreu uma longa travessia desde os primórdios do cinema (com O Grande Roubo de Trem, 1903) até hoje. O western passou a refletir sobre si mesmo, se questionou, tentou combinar seu lado épico com um traço mais humano e socialmente respeitável.

Este Relatos do Mundo é um reflexo disso. Sua história-base é a do Capitão Kidd, ex-combatente da guerra civil americana que faz uma jornada perigosa para levar ao lar Johanna, uma garotinha que ele encontra perdida. Ela, porém, foi criada desde pequenininha pela tribo de índios que a sequestrou, nem fala uma palavra sequer de inglês.

O paralelo automático para o cinéfilo é, claro, Rastros de Ódio (1956), de John Ford. Ele próprio um filme que já trazia o faroeste em bases mais complexas. O protagonista vivido por John Wayne passa o filme no encalço dos nativos que sequestraram sua sobrinha. A busca leva anos e, quando ele a encontra, ela já se tornou uma comanche.

Mas Wayne é tão racista que diz abertamente que prefere ver a sobrinha morta. Ele não é um herói, ou, pelo menos, não nesses momentos. Já iam longe os dias inocentes em que ele ia derrubando índios como dominós com seus tiros.

Tom Hanks não é John Wayne. Sua persona cinematográfica está mais para James Stewart ou Gary Cooper. Ao encontrar a menina (a ótima alemã Helena Zengel, 12 anos), ele não trata automaticamente o povo kiowa como inimigo. Ele tenta a tolerância, busca compreender a menina e a língua dela, enquanto ela tenta compreender a dele.

O personagem de Hanks é um homem mais esclarecido que a média da região: seu trabalho é viajar de cidade em cidade lendo jornais para uma plateia que não sabe ler, não tem tempo ou dinheiro para comprar um exemplar. Ele transporta notícias, novidades da ciência, do clima, da política e histórias extraordinárias. É um humanista.

No perigoso trajeto, Kidd e Johanna encontram todo tipo de preconceitos e intolerâncias. É um duelo entre a civilização e um Estados Unidos ainda incivilizado. Uma batalha que ainda perdura e que vivenciamos hoje mesmo no Brasil.

Em um momento, quando os Kiowa aparecem, não são nem como adversários, nem como amigos irrealistas naquele tempo. É uma aparição meio fantasmagórica, após uma tempestade de areia. Figuras misteriosas, ainda indecifráveis para aquele homem, mas não inimigos imediatos. Ainda assim, uma mistura de medo e fascínio.

A direção de Paul Greengrass vai na contramão de suas narrativas nervosas da série Jason Bourne, se adequando à trama. Na encenação, faz falta que o personagem de Hanks se esforce um pouco mais no diálogo, tentando se explicar por gestos e não apenas falando uma língua que a garota não entende. Significa que, no começo, ele não está se importando muito com essa comunicação? Pode ser.

Ainda com Rastros de Ódio como uma espécie de espelho reverso, Relatos do Mundo evoca diretamente o filme de John Ford ao citar o famoso plano da imagem de John Wayne sozinho do lado de fora da casa, emoldurado pela porta. Mas aqui, usado para ressaltar a diferença entre os dois filmes, os dois protagonistas, as duas visões de mundo.

Onde ver: Netflix

News of the World, 2020.
Direção: Paul Greengrass. Elenco: Tom Hanks, Helena Zengel, Mare Winningham.