A primeira magia

O carismático trio: um dos grandes acertos do filme

A história de Harry Potter começa calcada em vários contos de fadas. Como em A Bela Adormecida, ele é especial, mas cresce sem saber disso, para sua própria proteção. Com a morte dos pais, a família que resta a ele é seu algoz, como em Branca de Neve ou Cinderela.  Nos contos clássicos, são as madrastas que transformam as enteadas em empregadas da própria casa. No romance da britânica J.K. Rowling, assim como na adaptação para o cinema, são os tios que o colocam para dormir no apertado armário embaixo das escadas, enquanto enchem o filho de mimos. Aurora, que viria ser a bela adormecida, era uma princesa que a qualquer momento poderia ser vítima da maldição de uma bruxa. Harry é um bruxo – mas ainda não sabe no começo de Harry Potter e a Pedra Filosofal (Harry Potter and the Philosopher’s Stone/ Harry Potter and the Sorcerer’s Stone, EUA/ Reino Unido, 2001).

Essas relações não são casuais. O primeiro filme da série se assemelha mesmo a um conto de fadas. Quando completa 11 anos, Harry é resgatado de sua vida de gato borralheiro por um meio-gigante chamado Hagrid. Ele é o guarda-caças da escola de bruxarias de Hogwarts, internato para onde todos os pequenos bruxos devem ir nessa idade – e que estáquase completamente fora do conhecimento dos “trouxas”, como os não-bruxos são chamados nesse mundo à parte (e sem qualquer conotação negativa).

Harry cresceu alheio à sua história. Quando ainda era bebê, um terrível e poderosíssimo bruxo cooptou muitos seguidores e tentou dominar o mundo. E teria conseguido se não tivesse falhado, por alguma razão, ao tentar incluir o bebê Harry na sua lista de assassinatos. Depois de matar os pais da criança e ao tentar fazer o mesmo com ela, algo inesperado aconteceu: o vilão foi aparentemente destruído e Harry saiu ileso, a não ser por uma cicatriz em fora da raio na testa.

Isso é contado a Harry e mostrado ao espectador em forma de flashback – uma cena que viria a ser tão recorrente quanto, digamos, a morte dos pais de Bruce Wayne por um assaltante em um beco escuro em qualquer história do Batman. Ela é o subtexto sombrio em uma história que, nesse começo, está mais interessada em mostrar o encantamento de um mundo novo. Como se Hogwarts fosse Oz em Technicolor e a Londres do mundo real o Kansas em sépia. Mas mesmo Oz tinha seus perigos.

Assim, boa parte da história é usada para mostrar os quadros que se mexem, as escadas que mudam de direção, os fantasmas simpáticos que circulam pelos corredores, mas também há espaço para um ser meio-vivo que bebe o sangue de unicórnios mortos ou um vilão literalmente de duas caras. O equilíbrio entre essas duas vertentes, sem se derreter demais pelas possibilidades bonitinhas da história.

Outra qualidade do livro bem aproveitada pelo filme de Chris Columbus (roteirista nada menos de  Gremlins, 1984, Os Goonies, 1985, e O Enigma da Pirâmide, 1985, e diretor de Uma Noite de Aventuras, 1987, Esqueceram de Mim, 1990, e Uma Babá Quase Perfeita, 1993) é a atenção ao cotidiano da escola – que nada mais é que o alicerce da construção do universo proposto por J.K. Rowling. Em Harry Potter e a Pedra Filosofal, tão importante quanto a resolução do mistério é não chegar atrasado nas aulas, estudar para as provas e  ajudar sua casa a vencer a competição contra as outras três no fim do ano. O extraordinário sucesso dos livros – na época do primeiro filme, a série já ia no quarto exemplar – permitiu à escritora controlar de perto a adaptação e fazer exigências.

Assim, o roteirista Steve Kloves manteve mais fiel do que a média das adaptações da literatura para o cinema. Outra exigência é a de que o elenco fosse 100% britânico. E foi quase isso, se descontarmos que um ou outro ator nasceu fora do Reino Unido e cresceu no país e que Richard Harris, um dos principais do elenco (no papel de Alvo Dumbledore, diretor de Hogwarts), é irlandês (nasceu ali, vizinho às terras da rainha).

De qualquer forma, o resultado foi uma superequipe do elenco britânico. Maggie Smith, Alan Rickman (ótimo, como o sombrio professor Severo Snape), Julie Walters, John Cleese e John Hurt à frente. Eles formam uma base que dá um poderoso suporte ao novato conjunto de garotos que deve liderar as ações do filme. E se há um elogio a ser feito sobre o primeiro filme da série Harry Potter, este será sobre a escolha do elenco.

Daniel Radcliffe, como Harry, e Emma Watson (parisiense, mas morando na Inglaterra desde os cinco anos) e Rupert Grint, com Hermione Granger e Rony Weasley, formam o triunvirato que deve sustentar não só este filme, mas também os que viriam. Hermione, em especial, é uma delícia de personagem, com seu jeito de caxias. Ainda tinham o que aprender no quesito atuação, é verdade, mas, transbordam carisma desde a primeira aparição. E estavam cercados de grandes professores.

Eles nunca são ofuscados pelos efeitos especiais, por exemplo. E eles são vários e bons. Principalmente os de vôo em vassoura. O primeiro vôo, na aula, em que Harry enfrenta o rival almofadinha Draco Malfoy (Tom Felton) tem um visual belíssimo, antecipando a ótima sequência do jogo de quadribol, o esporte preferido dos bruxos.

O filme se sai muito bem na missão de estabelecer o mundo onde as continuações também se passarão. A aventura é envolvente e o dia-a-dia em Hogwarts, fascinante. Existe uma teoria no cinema de que um personagem acaba sendo o “representante” do espectador dentro do filme. Ele vê as ações com os nossos olhos. Em A Pedra Filosofal, o próprio Harry Potter é esse personagem. E quando ele está de partida, no final, ficamos – como ele – ansiosos por voltar no ano letivo seguinte.

Harry Potter e a Pedra Filosofal (Harry Potter and the Pilosopher’s Stone/ Harry Potter and the Sorcerer’s Stone, Estados Unidos/ Reino Unido, 2001). Direção: Chris Columbus. Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Richard Harris, Maggie Smith, Robbie Coltrane, Tom Felton, Fiona Shaw, Richard Griffiths, Julie Walters, John Hurt, Ian Hart, Zoë Wanamaker, John Cleese, James Phelps, Oliver Phelps, Matthew Lewis, Warwick Davies, Geraldine Sommerville, Bonnie Wright.

Leia mais:

Seqüências:
– Crítica de Harry Potter e a Câmara Secreta
– Crítica de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban
– Crítica de Harry Potter e o Cálice de Fogo
– Crítica de Harry Potter e a Ordem da Fênix
– Crítica de Harry Potter e o Enigma do Príncipe
– Crítica de Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 1
– Crítica de Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2