Sem medo de ousar

Harry, Rony e Hermione: “Estamos sozinhos”

Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 1 (Harry Potter and the Deathly Hallows – Part 1, Reino Unido/ EUA, 2010) é uma espécie de O Império Contra-Ataca do mundo de Harry Potter. O episódio V de Guerra nas Estrelas terminava absolutamente em aberto, com os mocinhos na pior, e era natural esperar algo semelhante deste sétimo filme da série do jovem bruxo, que já vem num mergulho gradativo em direção ao sombrio desde o primeiro filme, de 2001. E o diretor David Yates e o roteirista Steve Kloves ainda conseguem algumas surpresas – até para os especialistas no mundo de Hogwarts.

A trama se concentra basicamente na busca de Harry Potter (Daniel Radcliffe), Hermione (Emma Watson) e Rony (Rupert Grint) pela horcruxes – os objetos enfeitiçados onde o vilão Voldemort “depositou” frações de sua alma repartida. Só com a destruição desses objetos, ele poderá ser derrotado. O trio de jovens, agora com 17 anos, no entanto está sendo caçado pelos Comensais da Morte, que passam a dominar até o Ministério da Magia.

Não há mais a proteção de Dumbledore (Michael Gambon), que morreu no sexto episódio. Nem dos demais professores ou do meio-gigante Hagrid (Robbie Coltrane), já que eles não estão mais no ambiente familiar da escola de Hogwarts. Se tornam fugitivos nas ruas de Londres ou no meio do mato. Quando chegam à casa da família Black, que servirá de refúgio, certicam-se de que ela está vazia e aí, quando Hermione diz “Estamos sozinhos”, essa frase toma uma dimensão muito maior.

Os filmes gozam de uma coerência interna bastante respeitável para qualquer série: não há grandes alterações de qualidade de um filme para os outros. As nuances, no entanto, permitem que alguns se sobressaiam. Este é o terceiro dirigido por Yates, sempre disposto a tornar tudo lúgubre (é fácil reparar, por exemplo, na sobriedade dos cenários de Hogwarts em comparação ao colorido dos primeiros filmes), mas desta vez as ousadias formais e temáticas vão muito além do esperado.

Yates consegue imprimir um clima de constante perigo no isolamento dos personagens. Mas – como nenhum outro filme da série antes – a câmera torna-se nervosa nas cenas de perseguição e há momentos que lembram os melhores filmes de espionagem. As Relíquias da Morte constrói bem tanto cenas de suspense, como uma invasão ao Ministério, quanto pequenas cenas intimistas, como o trio discutindo o que fazer, sentado à mesa de uma lanchonete.

Há outras construções de cena muito interessantes. Se alguém poderia fazer uma analogia entre a guerra movida pelos Comensais da Morte para que prevaleça a “pureza” do sangue e o nazismo – eles consideram os nascidos de uma união entre bruxo e “trouxa” (humanos não bruxos, você sabe) e os nascidos de dois “trouxas” como “sangue-ruim” –  quando se torna institucional, fica bem mais evidente: interrogatórios são feitos para descobrir bruxos de “sangue ruim”, os guardas do ministério usam uniformes que lembram os dos soldados nazistas e até os cartazes seguem a programação visual típica do III Reich. É um tempero político muito bem-vindo.

Outro grande momento, claro, é a seqüência das relíquias da morte propriamente dita. O conto é narrado através de uma belíssima animação do suíço Ben Hibon: são três incríveis minutos que funcionam como um curta-metragem dentro do filme e estebelecem elementos importantes para a reta final da história.

Mas há também o lado emocional, que o filme equilibra bem com a trama de ação e suspense. Há muito que se fala que os filmes da série estão se tornando adultos junto com os personagens, mas agora os hormônios em ebulição rendem mais do que primeiros beijos inocentes. Agora, há inesperados momentos até de nudez – esta, durante um delírio enciumado de Rony, num momento capital da trama. Em outro momento, uma dança entre Harry e Hermione parece colocá-los em dúvida sobre o que realmente querem.

Hermione é destaque em duas cenas fortes – fortes por motivos distintos. Em uma, logo no começo, ela apaga a si mesma da memória dos próprios pais para protegê-los da perseguição que virá. É um momento de profunda emoção, mas que passa longe do melodramático. Outra cena é quando a jovem bruxa é torturada por Belatriz Lestrange (Helena Bonham-Carter), um momento forte que foi até podado para não arriscar uma classificação indicativa mais severa nos Estados Unidos e na Inglaterra.

E se esse texto parece meio cifrado a ponto de não ser entendido por quem não tem a menor intimidade com a série, é isso mesmo: o filme também é. Pode ser preciso ter familiaridade com conceitos expostos de dez anos para cá para perceber melhor os dramas e pequenas conquistas dos personagens.

Ou não: como escreveu o crítico americano Rober Ebert, o importante é que os personagens saibam o que está acontecendo. O espectador que caiu de pára-quedas só precisa confiar neles e também vai aproveitar bem um grande filme. Ou esclarecer uma coisa ou outra com a menininha sentada ao seu lado, na platéia.

Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 1 (Harry Potter and the Deathly Hallows – Part 1, Reino Unido/ EUA, 2010). Direção: David Yates. Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Alan Rickman, Ralph Fiennes, Tom Felton, Helena Bonham Carter, Robbie Coltrane, Evanna Lynch, Jason Isaacs, Bonnie Wright, Rhys Ifans, Helen McCrory, Brendan Gleeson, James Phelps, Oliver Phelps, Imelda Staunton, Michael Gambon, Timothy Spall, Julie Waters, Bill Nighy, David Thewlis, Mark Williams, John Hurt, Fiona Shaw, Richard Griffiths, Warwick Davis, Maggie Smith, Clémence Poésy, Matthew Lewis, Geraldine Sommerville, Katie Leung, Miranda Richardson.

Leia mais:

Precedido por:
– Crítica de Harry Potter e a Pedra Filosofal
– Crítica de Harry Potter e a Câmara Secreta
– Crítica de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban
– Crítica de Harry Potter e o Cálice de Fogo
– Crítica de Harry Potter e a Ordem da Fênix
– Crítica de Harry Potter e o Enigma do Príncipe

Seqüência:
– Crítica de Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2